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Semeando Sustentabilidade

A primeira e importante iniciativa de conservação e restauração florestal de recursos naturais na região da Bacia do Chapéu, realizada em 2008 pela Akarui em parceria com o PESM-NSV, foi o repovoamento de juçara no PESM-NSV e em sua zona de amortecimento, localizada nos municípios de São Luiz do Paraitinga e Natividade da Serra. A juçara é uma importante palmeira da Mata Atlântica, considerada árvore-mãe da floresta por alimentar diversas espécies de fauna e um alimento rico em ferro e vitaminas. 

Semeando Sustentabilidade
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Produtores familiares e moradores da zona de amortecimento do PESM-NSV foram mobilizados a realizar a coleta de sementes de juçara, a produzir suas mudas em viveiros e o plantá-las em áreas de proteção ambiental de suas propriedades, especialmente em matas ciliares. Aprenderam a processar a polpa da juçara para consumo próprio e comercialização e, naquela ocasião, a juçara foi oferecida como merenda escolar para a comunidade escolar, através do Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A juçara foi bem aceita nas escolas e gerou renda para as famílias coletoras, que ofereceram um alimento saudável para a merenda da região. 

O programa Semeando Sustentabilidade deu continuidade às suas ações de restauração florestal de mata nativa em 2010, desta vez com maior diversidade de espécies da Mata Atlântica. Foram restaurados 160 hectares de floresta nos municípios de São Luiz do Paraitinga e Natividade da Serra, sendo 40 hectares de matas ciliares em propriedades rurais e 120 hectares de enriquecimento florestal dentro do PESM-NSV. 

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Diagnóstico Rural Participativo

No ano de 2010, o município de São Luiz do Paraitinga sofreu uma grande enchente. Naquela ocasião, a Akarui realizou um trabalho de planejamento territorial para subsidiar ações preventivas e mitigadoras de assoreamento na Bacia do Ribeirão do Chapéu através de duas frentes de ação: levantamento e organização de informações qualitativas e quantitativas para produzir um mapa georreferenciado de análise físico-ambiental; um diagnóstico rural participativo junto à comunidade da região da Bacia do Ribeirão do Chapéu para construir uma proposta de restauração ambiental a partir das necessidades levantadas pela comunidade. 

 

As comunidades de cada bairro levantaram o histórico, uso da terra e as potencialidades de sua localidade, assim como problemas, demandas e necessidades. Sobre os recursos hídricos, por exemplo, as prioridades foram a recuperação de nascentes, de Áreas de Preservação Permanente e a construção de sistemas de esgoto.

Diagnóstico Rural Participativo
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Sistemas Agroflorestais e Silvipastoril

Ainda na linha de restauração florestal e planejamento territorial, em parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, a Akarui investiu esforços na prática de modelos ecológicos de pastagem e alternativas para o uso do solo junto a produtores familiares da Bacia do Chapéu, Bacia do Turvo e Vargem Grande. 

Os produtores realizaram em suas propriedades a implementação de pastos piqueteados e de rotação, sistema em que uma área de pasto é delimitada por piquetes e, a cada período do ano, o bovino visita uma dessas partes para se alimentar. Enquanto isso, as outras se recuperam com o tempo de rebroto do pasto e com o plantio consorciado de sistemas agroflorestais (como abóbora e feijão, por exemplo), enriquecido com árvores frutíferas para fazer sombra para o animal e, no médio e longo prazos, alimentar os animais e a própria família de produtores. 

O resultado dessas ações se tornou uma referência para a criação de políticas públicas para o fortalecimento da atividade produtiva rural com ênfase no acesso ao mercado de produtos oriundos de Sistemas Agroflorestais e Silvipastoril no Vale do Paraíba.

Sistemas Agroflorestais e Silvipastoril
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Conservação ambiental e alternativas econômicas

Há estudos científicos na Bacia do Chapéu que comprovam que houve um aumento da biodiversidade da região a partir da regeneração natural da cobertura vegetal de antigas áreas de pastagem que, por muito tempo, deram importante retorno econômico às suas comunidades. 
 
Mas os cientistas que conduziram as pesquisas questionam: o aumento da biodiversidade causado pelo abandono da terra e por conta da falência de um sistema produtivo “é bom para quem”? A conclusão desses estudos é que é preciso impulsionar um processo de participação das pessoas que vivem na região para pensar em conjunto como associar a recuperação das florestas às alternativas econômicas de suas propriedades. 
 
Para isso, é muito importante o planejamento do uso da terra de suas propriedades de forma sustentável, ou seja, considerar os interesses de produção das pessoas que vivem nos bairros do Chapéu e incentivá-las a pensar a paisagem da região como um território integrado, em que o aumento da biodiversidade em áreas de proteção ambiental de sua propriedade, por exemplo, influencia na qualidade e quantidade da água de toda a região, além de garantir a presença dos recursos naturais para as próximas gerações. 
 
Segundo a pesquisadora Juliana Farinaci, a conservação ambiental é decisiva para garantir a qualidade de vida na Terra. As florestas são um importante patrimônio da humanidade, mas não devem estar em conflito com os interesses das comunidades da Bacia e, sim, integrada ao sistema de produção de cada propriedade. Fomentar a pesquisa sobre esses temas de modo a convidá-los a conhecer essas propriedades e conversar com seus donos, ou mesmo descrever como sua família realiza o planejamento de sua propriedade, é de grande valia para a compreensão da importância da associação entre a conservação ambiental e a qualidade de vida das pessoas do campo. 

Conservação ambiental e alternativas econômicas
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Ribeirão do Pinga e as 7 Cachoeiras

O Refúgio das 7 Cachoeiras fica no distrito de Catuçaba, na estrada conhecida como Quebra Pratos, antiga rota de tropeiros. Quando José Carlos e Nilza compraram essa terra, em 2003, não sabiam da existência das sete cachoeiras. Ao iniciar os trabalhos na terra, começaram a traçar e abrir trilhas ecológicas e se surpreenderam ao encontrar as sete quedas e um muro de pedras construído por escravos. 


Sertãozinho e Sertão Grande são dois afluentes do Ribeirão do Pinga e passam dentro de sua propriedade. São cursos de águas cristalinas, de trajeto encachoeirado com grandes pedras, uma paisagem típica de Mata Atlântica. O Sertão Grande teve suas sete cachoeiras nomeadas e é possível chegar até sua nascente, um olho d’água preservado no alto da montanha. 

Outra ação realizada desde o início pelo casal foi a restauração florestal da propriedade realizada junto aos primeiros visitantes do Refúgio, que incluía grupos de estudantes. De uma estrutura original localizada na propriedade, montaram uma cozinha onde recebiam as visitas para almoço e atividades ecológicas. Mudas eram distribuídas e crianças, que hoje são adultas, deixaram lá sua marca ao plantar as primeiras árvores no local. 

José Carlos acredita que a Estância Turística de São Luiz do Paraitinga deve valorizar as riquezas socioambientais do município, assim como valoriza suas riquezas culturais. Por experiência, afirma que o turista que vem das grandes cidades tem acesso a muita informação e produção cultural e, quando vem para o município de São Luiz, busca descansar e relaxar do dia a dia atribulado através do contato com a natureza: a água, a terra, o ar, o fogo, o céu, o silêncio e o modo com que a comunidade local se relaciona com a vida e com as pessoas. 

Ribeirão do Pinga e as 7 Cachoeiras
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Entrevista com Dona Maria Margarida de Campos,
nascida na região da Cabeceira do Chapéu

Dona Maria nasceu no alto do Rio do Chapéu, no distrito de Catuçaba, na região das cabeceiras do principal afluente do Rio Paraitinga. Naquela época, a escola era longe e segundo Dona Maria: “dava mais de uma hora de caminhada descendo o morro” junto daquele “bando” de criançada que começava a frequentar a escola aos sete anos de idade. Ela conta que quando chovia, e o Rio do Chapéu enchia, a vizinha da escola acolhia a professora e todos os alunos na casa dela. Dava comida e os acomodava para dormir, pois, por conta da altura da água, a professora não conseguia voltar para a casa e os pais dos alunos não conseguiam atravessar o rio para buscar as crianças na escola. Todos ficavam sem comunicação. Anos mais tarde, Dona Maria lembra que Seu Castorino Monteiro conseguiu a construção de uma escola no terreno dele e, assim, a escola ficou mais perto de sua casa, no meio do caminho. A turma que vinha debaixo, da vila de Catuçaba, é que tinha que andar um pouco mais. Segundo ela, a ruína da antiga casa da escola está lá até hoje. 

 

Dona Maria tem boas lembranças da casa da avó e adorava quando a turminha de meninada passava a noite por lá. Vovó acolhia todo mundo, tudo no simples, no feijãozinho com arroz, canjiquinha, franguinho no quintal, o porco que tinha, a vaca de leite que nunca faltou. Era muita fartura. Dona Maria ia para a escola e também ajudava o pai na roça, onde fazia de tudo: ajudava a arrancar feijão, a limpar, tudo. Antes de ir para a escola, que começava às 11h, tinha que acordar cedo e correr. Ela tinha que pegar o caldeirão de comida, subir o morro, levar almoço para os camaradas lá em cima, voltar correndo, trocar de roupa e ir para a escola. No dia em que não tinha aula, as crianças ajudavam a família em tudo, com exceção de quebrar o milho que era serviço pesado e roçar o pasto. Mas ajudavam a limpar as plantas, plantar batata, mandioca, cana, cebola, alho, vagem, iam buscar vassoura nos morros, lenhavam no burro. O pai dizia: “quer lenhar comigo?”. “Vamos!” Pegava o burrinho de jacá e o enchia todinho de lenha. Não tinha gás naquela época. Não tinha chuveiro. Tinha banho de bacia, algumas famílias nem a bacia tinham. O banheirinho era fora, bem longe da casa, barreado de barro, cobertinho de telha e tinha a biquinha d´água. Antes da bica d´água o pessoal lavava a roupa dentro do poço. Descia no veio de água, colocava a tábua, esticava a roupa e deixava quarar para ficar limpinho. Hoje não tem mais isso. 

O feijão que a família colhia dava para o consumo de um ano inteiro. Já se separava as sementes para plantar no ano seguinte e o que sobrava, colocava para vender. O pai de Dona Maria tinha um camarada para ajudar, dava de meio, pois era muito para ele sozinho. Todo dia seu pai estava com a enxadinha nas costas e os filhos juntos. Os filhos mais velhos iam para ajudar, os mais novos ficavam para ajudar a fazer o almoço. Sua mãe teve dez filhos e vingaram seis. Era uma turminha boa.


Naquela época, se ouvia rádio e se brincava de trabalhar: as crianças ajudavam a criar os filhos mais novos. Brincar mesmo era de boneca que a família comprava quando ia para Aparecida. Dona Maria conta que era “pidona”, pedia boneca e seu pai comprava. Quando quebrava um prato de louça ou uma xícara, faziam fogãozinho e brincavam de panelinha. Como não tinha o fogãozinho e panelinha de brinquedo, as crianças faziam um quadrado no barranco e o buraquinho lá em cima para colocar a lenha e dizer que era fogão de lenha. A loucinha era uma louça quebrada. “Ah, guarda pra nós que o nosso fogãozinho não tem nada!”, pedia Dona Maria, quando criança. Brincavam bastante e, na escola, a professora ensinava muita coisa, como bordar. Faziam catequese e primeira comunhão. 

Seu pai era capelão e naquele tempo era reza que se fazia, não era missa. Missa só de mês ou de sétimo dia. Se atravessava a enchente do Chapéu para ir às missas. Descia o morro aquele bando de meninada e os mais velhos cuidavam da criançada. Quando o Rio do Chapéu enchia, não se conseguia atravessar, pois não havia ponte. Quando era um caso de festa ou de casamento, as mulheres que aguentavam andar vinham a pé, as mais velhas vinham a cavalo e pegavam o caminhão na propriedade do Seu Nelsinho. Rio nenhum tinha ponte, então pulavam de pedra em pedra. Quando chovia um pouco mais, a água cobria as pedras e só passava quem estava a cavalo. Dona Maria se lembra do casamento de uma prima em que sua avó teve que ser carregada nos braços porque ela não podia pular. Não era aquela enchente de estrago, diz ela, mas quando a água aumentava um pouco, já não tinha como passar. Às vezes se cortava o caminho para não precisar esperar a água baixar. Pegava a estrada, subia o morro, cortava dois rios e já saia lá na frente, no pasto. 

Dona Maria conhece todos os veios de água do Rio do Chapéu. Naquela época não havia ponte nem estrada, eram pequenas trilhas de cavaleiros. Para pegar o leite, que era batido na região, se carregavam os burros e traziam a cavalo. Com o tempo, as estradas foram melhorando através da enxada e mutirão e, depois, com as benfeitorias realizadas pela prefeitura com o incentivo dos vereadores. Quando enchia o rio, os cavaleiros atravessavam com a água até a barriga do cavalo, mas atravessavam. Se não dava, o pessoal voltava para trás e esperava a água baixar. Hoje, se der dois meses sem chover, a água vai só diminuindo. Naquele tempo os rios eram mais cheios, tinham muitas minas, a água era uma fartura. Rio abaixo funcionavam os monjolos, canos carregavam grandes quantidades de água e grandes bicas eram montadas na porta das cozinhas. Mas chuva de estrago, no tempo em que ela era criança, não se lembra. Agora é que se vê essas coisas, mas antes não tinha não. Hoje, se ficar dois meses só com garoa, o nível do rio baixa.
 
A água das cabeceiras do Chapéu na propriedade da família de Dona Maria sumiu por dois anos. Não tinha água nem para escovar os dentes, mas hoje voltou a jorrar e encher as duas caixas da casa. A nascente está localizada no alto do morro do Cafezal e a água é captada de uma capoeira na metade do morro até chegar na casa. Quando chove, dá enchente na cabeceira e é possível escutar o barulho da água. A mata que protege o rio está até mais bonita que antigamente porque a família não mexeu e deixou a mata se regenerar. Tem lugar que já virou capoeira, com bastante mata. Capoeira é um terreno que não se limpa mais – “vira em árvores”, diz ela. Antes era limpinho para criação, o corte de roça era separado e tinha a cerca para pôr a criação. 

o outro”.

Entrevista com Dona Maria Margarida de Campos
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Dona Maria conta que o pessoal não tinha costume de pegar peixinho no Rio do Chapéu, pois havia poucos poços onde dava para pegar um lambarizinho. Alguns inventavam de pescar, mas não pegavam nada e voltavam para casa. Em Catuçaba ainda se vê: tem quem pegue a vara e saia para pescar em algum lugar, mas hoje em dia são mais represas e o peixe fica ali mesmo. É rio de montanha: só onde forma poço ou faz barreira que dá para pescar. 

Quando Dona Maria era bem menina, conheceu o monjolo que batia milho. Tinha um bem na porta da cozinha da casa do Seu Comercino, na chácara adiante do Seu Adão e na casa de sua avó. O milho era deixado de molho para fazer a farinha e a quirera, e a farinha era torrada em casa. Sua mãe trabalhava direto no monjolo. 

Bichos tinha bastante, como a cobra cascavel e de vez em quando até se via uma pequena jaguatirica marrom com anel preto no rabo. Só os mais antigos tinham costume de ir para o sertãozinho caçar.
 
Conta que o pessoal não tinha costume de entrar no rio. Havia uma cachoeira que gostavam de frequentar, mas só de vez em quando, quando fazia calor. Hoje o costume é ir direto na Cachoeira do Seu Nelsinho. Mas naquele tempo o pessoal não ligava muito: eles gostavam muito do campo e à tarde todos os rapazes reuniam-se para jogar bola. Todo mundo trabalhava, mas dava quatro horas, vinham dois ou três dali, três ou quatro de lá, dava uma turma! 

A água era mais para utilidades do que para o lazer. No tempo de Dona Maria não tinha caixa d´água, era tudo do rio. Descobria-se uma mina, trazia a mina para mais perto da casa, pelo rego d´água, colocava uma telha e a água ficava caindo ali o dia inteiro. Tomava-se banho de bacia, carregava-se água nos baldes e trazia para dentro de casa. Quando se percebia que ia chover, se enchia as latas d´água para a comida e para o banho, para não pegar água suja depois. Mas no outro dia já amanhecia tudo limpinho de novo. Não tinha desperdício. Não tinha caixa de reserva, não tinha nada como tem agora. Guardava-se a água que seria suficiente de um dia para o outro, não podia deixar acumular.

Antigamente, a terra era muito boa, usava-se esterco como adubo e não agrotóxico. Com o tempo foram aparecendo remédios para colocar no milho para não carunchar. Perdia-se muito feijão com caruncho, mas nem isso se perdia: cozinhavam para dar aos porcos que estavam cevando, na engorda. O pai de Dona Maria “acudia” o feijão com areia para não carunchar. Tirava a areia do rio e esperava esfriar. Guardavam os grãos em uma tuia. A tuia é como um jacá, porém maior e muito bem trançado, não varava nenhum carocinho de feijão. A tuia costumava ficar no canto da casa: era metade feijão e metade areia. Na hora de escolher os grãos, tirava a areia na peneira. Tinha que esperar esfriar no monte para depois jogar na tuia. Seu pai sabia confeccionar o jacá, o balaio de taquara com tramas grossas e vazadas. A tuia já era feita por quem sabia, mais no capricho, como uma peneira de taquara alta e um pouco larga, confeccionada de tramas finas e bem lixadas, sem espaço entre elas para guardar os grãos e sem tampa. Seu pai chamava as crianças para moer canjiquinha. Do fubá faziam bolo e angu e ainda aproveitavam o milho para a quirera. O sabor era outro. Também plantavam alho e cebola. A plantação era tão grande que perdia de tanta fartura no quintal: era metade alho, metade cebola. Até “acudir” toda a plantação, as tranças de alho e cebola que eram preparadas davam para o gasto anual da família. Presenteava-se vizinhos e amigos e ainda eram vendidas. Não se guardava de um ano para outro para não estragar. No tempo em que ela e seus irmãos eram crianças, seu pai era forte. Depois foi ficando doente, foi plantando menos. 

Seu pai e seu sogro eram meeiros, uma condição muito comum na região. Trabalhavam trinta dias no arado. Para arar, colocava-se a canga no pescoço do boi, uma pessoa ficava chamando o boi através de uma roseta pendurada em um fio na ponta de uma vara, o boi obedecia e a outra pessoa seguia atrás, segurando o cabo do arado. Fileira em fileira revirando a terra, depois era só cavar e plantar o milho e o feijão. Não se colocava agrotóxicos. Dona Maria ainda guarda em sua casa a canga e o arado. “Só Deus sabe a fartura. Era gostoso demais!”, diz. 

Dona Maria sempre cuidou de sua horta, mesmo depois de casada. Plantava um quilo de alho e com isso dava para passar o ano. Ela conta que nunca faltou verdura ou mistura. A horta ia estragando, chamava o camarada e fazia em outro lugar, diz ela. 


“Não precisava nem escolher: onde fizesse a horta, dava! Ainda dá. A terra está lá. Que terra. Só deus sabe! Tinha porca criadeira e abóbora alastrando por toda a roça. ‘Gente, por que não planta uma coisinha lá?’, ‘Ah, mãe...’ ‘Então não vou dizer mais nada. Vai comprar!’. Lá, se planta uma mandioca, você tem; se planta uma batata, você tem; se planta milho, você tem; chuchu tinha o ano inteiro: pegava de bacia para dividir com as vizinhas. Era muita coisa. Comprava o arroz, o macarrão, o trigo, essas coisinhas só, mas a mistura era de lá mesmo. O frango, o ovo, a carninha de porco, o leite tinha todo o dia. Nunca faltou leite. Só ficam as lembranças. Café a gente colhia do pé, enxugava e limpava, para depois pegar de novo, torrava, fazia o pó. Não comprava o pacotinho de café, não! Torrava. Era aquele café forte! Com o alho a gente fazia a mesma coisa: reunia e cada um fazia lá um tanto de tempero, dava para usar por duas semanas e depois fazia de novo. Nossa senhora, que fartura! E outra! Não tinha nada de cobrar um do outro. Um matava o porco, quase todo mundo comia, dez, doze pessoas. Caso fosse dividir, a gente guardava o da gente, dividia para os outros e depois guardava aquela gordura. A gente não usava óleo, era gordura do porco. A gente enchia a lata de 18 litros, porque o sabor e o tempero para a comida é outro. Todo mundo comia e não tinha nada de um cobrar o outro. Cobrar o quê, meu Deus do céu? Tudo da família, né? Era um estendendo a mão para o outro. Precisou, estava todo mundo junto. Era uma luta, mas a gente era forte. E agora não tem nada disso, santo Deus! Hoje em dia a diferença é grande! Até que ponto vai eu não sei, porque vai mudando. Não sei o que vai ser para frente, mas era uma vida muito mais gostosa. Se tinha um pasto sujo, juntava em mutirão, dez, doze pessoas, a gente dava o almoço e o pasto ficava limpo. Uma turminha de camarada, tudo de graça. Levava café, quando era meio-dia, uma hora o pasto estava limpo. Corte de roça era assim também. Fazia mutirão. Era de graça, num sábado, juntava aquela turma e deixava a roça limpa. Agora cada um é responsável por sua parte. Está diferente, né? Mas aqui é um ajudando o outro”.

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